04/02/2024 às 12h12min - Atualizada em 04/02/2024 às 12h12min

Licitações em Canaã: Governo flerta com cláusulas restritivas, desafia o Judiciário e ignora o interesse público

Dentro do quadro Observatório de Licitações do Jornal Pará, alguns especialistas em licitações públicas ouvidos pelo Jornal manifestaram preocupação com algumas características identificadas nos editais de licitações da Administração Pública de Canaã dos Carajás.

Para os especialistas, vários processos licitatórios de 2021, 2022 e 2023, analisados para o quadro Observatório de Licitações, possuem cláusulas restritivas que surpreenderam os analistas, pois muitas das situações estranhas identificadas já se encontravam pacificadas perante os Tribunais de Contas e o Poder Judiciário.


Mesmo assim, apesar de já existir estabilização judicial em relação a determinados assuntos, alguns editais de licitações de Canaã dos Carajás continuam lançando cláusulas restritivas que impedem a participação de empresas, as quais, em outros entes federativos, estariam perfeitamente aptas a participar do processo licitatório.

Contudo, devido às cláusulas com regras estranhas e peculiares, os editais de Canaã dos Carajás retiram das competições diversas empresas que poderiam muito bem participar das disputas e colaborar para que a Administração Pública pudesse selecionar a proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso ao poder público.

Aliás, estabelece o artigo 11 da Lei de Licitações, Lei n. 14.133/2021, que o processo licitatório tem como um dos seus objetivos assegurar tratamento isonômico entre os licitantes, bem como a justa competição.

Dessa forma, inserir nos editais de licitações cláusulas que contrariam entendimentos já cristalizados perante os Tribunais de Contas e o Poder Judiciário, não apenas retira indevidamente vários licitantes das disputas, como também coloca em situação de extremo risco o contrato administrativo celebrado entre a Administração Pública e o particular, o qual pode ser questionado inclusive em ação popular pelo longo prazo de cinco anos, com base no artigo 5º, LXXIII, da Constituição Federal.

A título de exemplo de cláusula inserida em edital de licitação que representou severa e indevida restrição na participação de vários licitantes cita-se a Pregão Eletrônico n. 008/2024/SRP, do Fundo Municipal de Educação da Administração Pública de Canaã dos Carajás, cujo objeto era o:

 
“Registro de Preços para futura e eventual contratação de empresa especializada na prestação de serviços continuados de limpeza (e conservação, limpeza de vidros com fornecimento de materiais, equipamentos EPI e EPC’s) em ambiente escolar e unidades agrupadas a Secretaria de Educação, conservando e higienizando diariamente os espaços, visando atender as necessidades da Secretaria Municipal de Educação de Canaã dos Carajás.”  

A sessão do referido Pregão Eletrônico estava com data marcada para o dia 01/02/2024, e o processo licitatório recebeu vários pedidos de impugnação ao edital e pedidos de esclarecimentos à Administração Pública.

Dentre vários pontos questionados nos pedidos de impugnação pelas empresas estava o fato de o edital estar exigindo das empresas de limpeza a obrigatoriedade de registro perante o Conselho Regional de Química como qualificação técnica.

Contudo, essa exigência de registro perante o Conselho Regional de Química não possui amparo na jurisprudência do Poder Judiciário e do Tribunal de Contas da União, tratando-se de uma nítida afronta do Governo de Canaã dos Carajás ao entendimento pacificado pelo Judiciário.

Acontece que essa “simples” inserção de obrigatoriedade de registro perante o Conselho Regional de Química retira da disputa do certame quase que a totalidade das empresas de terceirização de limpeza do Pará, restringindo indevidamente a concorrência do processo licitatório e prejudicando o interesse público.

Veja o trecho do Edital e do Termo de Referência do Pregão Eletrônico 008/2024/SRP, do Fundo Municipal de Educação da Administração Pública de Canaã dos Carajás, no qual se exige o registro no CRQ:

 
Edital
11.7. Relativa à Qualificação Técnica:
c) Registro da empresa e responsável técnico no Conselho Regional de Química, conforme estabelecido na Resolução Normativa nº 122, de 09 de novembro de 1990, do Conselho Federal de Química.

Termo de Referência:
5.3.2. Qualificação Técnica:
b) Registro da empresa e responsável técnico no Conselho Regional de Química, conforme estabelecido na Resolução Normativa nº 122, de 09 de novembro de 1990, do Conselho Federal de Química.
 
Para os especialistas ouvidos pelo Observatório de Licitação, essa exigência é completamente sem sentido e, ao mesmo tempo, preocupante, pois confronta diretamente o entendimento pacificado do Poder Judiciário, conforme se verifica nas decisões abaixo:
 
CONSELHO REGIONAL DE QUÍMICA (CRQ). EMPRESA DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE LIMPEZA E CONSERVAÇÃO. REGISTRO (INSCRIÇÃO). INEXIGIBILIDADE.
 
1. Empresa de prestação de serviços de limpeza e conservação não está obrigada ao registro (inscrição) perante o Conselho Regional de Química. (CRQ.) Precedentes desta Corte.
 
2. Remessa oficial não provida.
 
(TRF-1 - REO: 00361375720034013800, Relator: JUIZ FEDERAL LEÃO APARECIDO ALVES, Data de Julgamento: 27/06/2011, 6ª TURMA SUPLEMENTAR, Data de Publicação: 06/07/2011).

 
"ADMINISTRATIVO - CONSELHOS DE FISCALIZAÇÃO PROFISSIONAL - CONSELHO REGIONAL DE QUÍMICA REGISTRO DE EMPRESA E ANOTAÇÃO DE PROFISSIONAL, LEGALMENTE, HABILITADO - CRITÉRIO DEFINIDOR - ATIVIDADE BÁSICA - LEI Nº 6.839/80 - APLICABILIDADE - LIMPEZA URBANA, ESGOTO, DEDETIZAÇÃO, JARDINAGEM, URBANIZAÇÃO E PAISAGISMO - OBRIGATORIEDADE INEXISTENTE.
 
a) Remessa Oficial em Ação Ordinária. b) Decisão de origem - Procedência do pedido.
 
1 - Sendo atividade básica da Autora limpeza urbana, esgoto, dedetização, jardinagem, urbanização e paisagismo, que não está inserida no campo de atuação privativa do químico (Lei nº 6.839/80, art. 1º), não merece reparo a sentença.
 
2 - Remessa Oficial denegada.
 
3 - Sentença confirmada".
 
(REO 00049645720094014300, DESEMBARGADOR FEDERAL CATÃO ALVES, TRF1 - SÉTIMA TURMA, e-DJF1 DATA:10/02/2012 PÁGINA: 1529.)
 
"ADMINISTRATIVO. CONSELHO REGIONAL DE QUÍMICA. LEI Nº 6.839/80. EMPRESA PRESTADORA DE SERVIÇOS DE LIMPEZA. ADMISSÃO DE QUÍMICO. DESNECESSIDADE.
 
O art. 335 da CLT aponta que a admissão de profissional químico somente é obrigatória nas indústrias de fabricação de produtos químicos, que mantenham laboratório de controle químico, e de fabricação de produtos industriais obtidos por meio de reações químicas dirigidas.
 
Empresa prestadora de serviços de não está obrigada a manter profissional de química entre seus empregados.
 
Precedente: AC 300888/AL; Quarta Turma; Desembargador Federal LAZARO GUIMARÃES; Data Julgamento 16/08/2005.
 
- Apelação improvida". (AC 200480000078486, Desembargador Federal Paulo Gadelha, TRF5 - Segunda Turma, DJE - Data: 02/06/2010 - Página: 257).
 
 
"Administrativo. Conselho Regional de Química. Empresa prestadora de serviços de limpeza. Inexigibilidade de contratação de profissional especializado em química. Ausência de previsão legal. Apelação e remessa oficial improvidas".
 
(AC 200180000087589, Desembargador Federal Lazaro Guimarães, TRF5 -Quarta Turma, DJ - Data:14/09/2005 - Página: 1087 - N:177.)
 
Há mais de vinte anos o Tribunal de Contas da União (TCU) também já decide e orienta a Administração Pública Federal no mesmo sentido, de não exigir a inscrição das empresas de limpeza e conservação no Conselho de Química ou Farmácia, uma vez que a exigência de registro em entidade de fiscalização profissional deve ser limitada à inscrição no conselho que fiscalize a atividade básica ou o serviço preponderante, objeto da licitação. Veja abaixo trecho de decisão do TCU sobre o tema:
 
“9.2.56. abstenha-se de exigir, ainda, nas licitações para contratação de serviços de limpeza e conservação, que a empresa esteja registrada nos Conselhos de Química ou de Farmácia, uma vez que a exigência de registro em entidade de fiscalização profissional deve ser limitada à inscrição no conselho que fiscalize a atividade básica ou o serviço preponderante, objeto da licitação, conforme Decisão nº 450/2001 – Plenário – TCU” (Acórdão nº 2521/2003 – Primeira Câmara – Ministro Relator Augusto Sherman Cavalcanti).
 
Em todas as decisões destacadas acima percebe-se com facilidade a desnecessidade de se exigir a inscrição das empresas de limpeza no Conselho Regional de Química, mas, na contramão do que já pacificou a jurisprudência do Poder Judiciário e do TCU, a Administração Pública de Canaã dos Carajás insiste em exigir a inscrição das empresas de limpeza num conselho profissional no qual não são obrigadas a ter.

Acontece que esse “simples” detalhe não pode ser considerado um erro banal. Ao contrário, a sua inserção indevida provoca uma série de prejuízos aos interesses coletivos da sociedade de Canaã dos Carajás quando retira da competição a quase totalidade das empresas que poderiam participar da disputa do processo licitatório.

Para efeito de comparação do quão descabida é a exigência de registro no Conselho Regional de Química, destaca-se os pregões eletrônicos promovidos pelo Governo do Estado do Pará, que é o maior contratante dos serviços de terceirização do Pará.

Para exemplificar, veja as exigências de qualificação técnica estabelecidas para contratação de empresas no Edital do Pregão Eletrônico SRP n. 006/2023/SEDUC. Neste pregão, o Governo do Pará pretendia contratar o seguinte objeto:

 
"Contratação de empresa especializada na prestação de serviços terceirizados, de forma indireta e contínua, mediante dedicação exclusiva de mão de obra, por meio de posto de trabalho de servente de asseio, conservação e limpeza, com fornecimento de saneantes, domissanitários, materiais e equipamentos necessários à plena execução dos serviços, conforme parâmetros e elementos descritivos a serem estabelecidos no Termo de Referência anexo a este edital, nos termos do art. 6º, XXIII, da Lei n° 14.133/2021".
 
Veja que o objeto do Pregão Eletrônico do Governo do Estado é praticamente o mesmo do Pregão Eletrônico de Canaã dos Carajás.

Contudo, veja a seguir que as exigências da qualificação técnica do Pregão do Governo do Estão não promovem a exclusão das empresas do setor de terceirização por conta da obrigatoriedade do registro destas empresas no Conselho Regional de Química. Ao contrário, as regras do Edital são cirúrgicas quando tratam de conselhos profissionais, e não impõem exigências indevidas.

Veja abaixo os itens do Edital do Pregão Eletrônico SRP n. 006/2023/SEDUC do Governo do Estado que tratam da qualificação técnico-operacional para as empresas de limpeza:

 
"9.23 Qualificação Técnico-Operacional:
9.23.1 Comprovação de aptidão para execução de serviço de complexidade tecnológica e operacional equivalente ou superior com o objeto desta contratação, ou com o item pertinente, por meio da apresentação de certidões ou atestados, por pessoas jurídicas de direito público ou privado, ou regularmente emitido(s) pelo conselho profissional competente, quando for o caso;"
 
Perceba que o Edital da SEDUC (Secretaria Estadual de Educação) não determina em qual conselho profissional as empresas de limpeza devem possuir registro. Ao contrário, o Edital estabelece que a comprovação de aptidão pode ocorrer por meio de certidões ou atestados {...} regularmente emitido (s) pelo conselho profissional competente, quando for o caso. Ou seja, Edital não promove limitações que podem vir a derrubar todo o processo de licitação e contratação pública no futuro.

O edital do Governo do Estado segue justamente o que dispõe a Lei de Licitações.

Por outro lado, quando a Administração de Canaã dos Carajás insere exigências indevidas nos editais ignora ao mesmo tempo a autoridade das decisões judiciais e o interesse público.
 
  • Resposta do Agente de Contratação, Senhor Douglas Ferreira Santana, aos pedidos de impugnação ao edital de Canaã dos Carajás

Outro ponto que chamou atenção dos especialistas ouvidos pelo Observatório de Licitações foi o fato de que os pregoeiros, e agora os Agentes de Contratação, do Governo de Canaã dos Carajás adotam uma postura “beligerante e ilógica” contra todos os pedidos de impugnação de edital, como se essas intervenções dos licitantes e cidadãos não tivessem o intuito de apenas fortalecer o processo de contatação pública.

Surpreendeu os analistas que esses pregoeiros e Agentes de Contratação utilizam algumas vezes argumentos que confirmam as teses apresentadas nas impugnações, mas, ao final, fazem um contorcionismo jurídico perigoso e assumem o risco de permanecer com as cláusulas que claramente limitam a participação de licitantes.

No caso do Pregão Eletrônico n. 008/2024/SRP, do Fundo Municipal de Educação de Canaã dos Carajás, relativo à contratação de empresa especializada na prestação de serviços continuados de limpeza, o Agente de Contratação, Senhor Douglas Ferreira Santana, não aceitou nenhum dos argumentos apresentados nos pedidos de impugnações e manteve todas as regas do Edital, inclusive a exigência indevida de inscrição no Conselho Regional de Química.

Interessante notar que a decisão do senhor Douglas Ferreira, em relação a exigência de registro no Conselho Regional de Química, está fundamentada no artigo 67 da Lei 14.133/2021[1].

Ocorre que este artigo disciplina em seus incisos IV e V que a documentação relativa à qualificação técnico-profissional e técnico-operacional será restrita a prova do atendimento de requisitos previstos em lei especial, quando for o caso; e ao registro ou inscrição na entidade profissional competente, quando for o caso.

Veja que o edital da SEDUC, do Governo do Estado, como visto acima, teve o cuidado de seguir estritamente o texto da nova Lei de Licitações, Lei 14.133/2021, e inseriu o mesmo termo da norma, qual seja, “quando for o caso”, nos casos de se exigir as certidões dos conselhos profissionais.

Contudo, Canaã dos Carajás não seguiu essa linha do texto da Lei de Licitações e sem qualquer amparo legal e jurisprudencial exigiu a inscrição das empresas num conselho profissional a qual não são obrigadas legalmente a estar vinculadas, e que já foi fartamente decidido pelo Poder Judiciário.
 
  • A revogação do Pregão Eletrônico pelo Secretário Municipal de Educação de Canaã dos Carajás
Apesar de o Agente de Contratação negar todos os pedidos de impugnação ao edital, o Secretário Municipal de Educação, Senhor Leonardo de Oliveira Cruz, decidiu revogar o processo licitatório, mas não pelos motivos das impugnações, mas sim por ter detectado um aumento significativo da metragem inicialmente estimada.
 
  • A responsabilidade da Alta Administração
De toda forma, é importante que a alta Administração de Canaã dos Carajás esteja atenta para o que está acontecendo nos editais de licitações, bem como na execução dos contatos administrativos, pois o cuidado com a legalidade da relação público-privada é essencial para se atingir de forma plena o interesse público.
 

[1] Art. 67. A documentação relativa à qualificação técnico-profissional e técnico-operacional será restrita a:
V - prova do atendimento de requisitos previstos em lei especial, quando for o caso;
 
V - registro ou inscrição na entidade profissional competente, quando for o caso;

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