19/04/2023 às 13h07min - Atualizada em 19/04/2023 às 13h07min

BBB23 e as questões raciais

O pacto da branquitude e a tendência de uma final com mulheres brancas

Luciana Hage

Luciana Hage

Mini-bio: Relações Públicas. Mestre em Ciências da Comunicação.

Antes de iniciar essa coluna esclareço que pela primeira vez, provavelmente não será a última, essa coluna será escrita em primeira pessoa. Justifico. O tema de hoje, a branquitude, exige, um posicionamento claro, sem impessoalidade.
 
E pensando bem, esse espaço deve ser uma ferramenta de diálogo, por isso não pode ser impessoal. Existe alguém que pensa e escreve sobre temas que entende ser importantes para si e para as outras pessoas. No caso, essa pessoa sou eu, Luciana Hage. Prazer! Obrigada! E vamos conversar, então.
 
O reality show mais assistido do Brasil é palco constante de debates que são muito caros à sociedade, como o racismo. A cada edição as questões raciais florescem mais e assim vamos falando repetidas vezes do quanto vivemos num país que tende se vê mais representado nas pessoas brancas.
 
As pessoas negras nesse programa, até ano passado, entravam quase que como uma cota, com no máximo dois casais. Considerando que no total são 22 participantes, os negros ficariam com a fatia de 18%, quando muito, de representação. 
 
Considerando os dados oficiais do IBGE, o Brasil tem em torno de 56% de pessoas pretas, logo, o BBB está longe de ser um espelho da sociedade, em se falando de representação racial.

De gênero essa representação é mais igual. De classe, há algum tempo, me arrisco a dizer, que a totalidade, ou quase a totalidade, dos participantes são de classes médias pra cima.
Ou seja, estamos assistindo um programa de gente branca e “rica”, essencialmente. Qualquer coisa que foge dessa construção causa estranhamentos, repulsa e o famoso “ranço”. Por isso, não é raro ver condescendência dos participantes da casa, e do público, com falas racistas de participantes brancos, ao mesmo tempo que se indignam com falas de autovalorização e de autoestima da coletividade negra das pessoas pretas.
 
O resultado das duas últimas disputas pela permanência na casa, que tiraram do programa duas mulheres negras que vinham sendo apontadas como queridinhas por uma boa parte do público, Sarah Aline e Domitila, reafirmaram a percepção de que o público consumidor do Big Brother Brasil é racista.
 
De maneira bem simples e didática, o racismo é a discriminação pela cor da pele. Atualmente é um crime, inclusive, tipificado na legislação brasileira, Lei 14.532/2023, que o equiparou à injúria racial. 
 
E, por favor, não saquem o tal “racismo reverso” nessa conversa. Pois, além de não ter qualquer embasamento social, teórico ou jurídico, ele não passa de uma justificativa infame para uma igualdade racial imaginária. 
 
Tendo isso em vista, analisando as participantes dos dois últimos “paredões”, de um lado Sarah era vista, por seus colegas e pelo público, como uma mulher jovem inteligente, assertiva em suas colocações, coerente em seus posicionamentos, livre sexualmente e corajosa. E Domitila como uma pessoa sem meias palavras, e as vezes com falas contestáveis, autoestima elevada, poliglota, viajada e com grande importância social por conta de seus projetos nas periferias de Pernambuco. 
 
E por outro lado, na composição do quadro da disputa, estavam Amanda, Larissa e Bruna, três mulheres brancas, com relevantes histórias, mas que tiveram em muitos momentos comportamentos agressivos, autoritários e condescendentes, no mínimo, com atitudes racistas e machistas e seus companheiros de jogo. Amanda, inclusive, quase um consenso, dentro e fora do programa, como uma mulher de poucos posicionamentos, que pouco se expõe.
 
Um parêntese, outra participante negra da casa, Aline, que esteve em uma das duas últimas disputas, é um caso complicado de se entender, já diria a música. Porque mesmo sendo negra, compõem um grupo de pessoas brancas, que a acolhe de maneira diferente das outras pessoas negras da casa, proporcionando a ela um lugar acolhedor e seguro, contraditoriamente, tendo em vista as atitudes já mencionadas de integrantes desse grupo para com outras pessoas negras. Fecha parêntese.
Tudo isso que falei até aqui me levou diretamente para uma leitura que fiz essa semana com meus colegas do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPA. Numa aula conduzida pela Profa. Danila Cal, lemos o “Pacto da Branquitude” de Cida Bento, uma professora, psicóloga e estudiosa da diversidade em ambientes corporativos, públicos e privados.
Nessa obra, Cida trata do pacto tácito que nós, pessoas brancas, fizemos para não enxergar, ou fingir que não enxergamos, o quanto a estrutura racista da nossa sociedade, nos permite o usufruto de privilégios, dos mais sutis aos mais escandalosamente explícitos.
 
Por exemplo, de modo geral achamos “normal” não ter pessoas pretas em cargos de liderança nas empresas. Costumamos dizer que essa ausência é porque não há pessoas desse grupo qualificadas para tanto. O que não é verdade. Há pessoas qualificadas, ainda que em menor número, o que falta é oportunidade para serem inseridas nos processos seletivos e não serem desconsideradas pela cor de suas peles, pelo volume de seus cabelos, entre outros fatores.
Como se isso não bastasse, ainda tiramos de nossas mangas o velho e equivocado discurso da meritocracia, que desconsidera totalmente os fatores socias que dificultam pessoas pretas e pobres de terem acessos de qualidade para disputarem esses espaços. Contudo, tem havido muita resistência e muitas pessoas pretas estão em condições de concorrer a cargos de liderança sim.
 
O trabalho de Cida Bento nesse livro é focado nos ambientes corporativos, mas é possível pensar na reprodução desses comportamentos em todos os outros ambientes sociais. Como um reality show, por exemplo.
 
Aí volto à questão da saída de Sarah Aline e Domitila, mas também incluo aqui a Marvvila, que foi considerada como “planta”, tanto quanto Amanda, pelos colegas e pelo público, isso só para ficar a esfera do gênero.
 
Vamos a algumas perguntas. O que fez uma mulher inteligente e sensível, como Sarah Aline, perder o jogo para uma mulher que tem atitudes grosseiras e arrogantes como Bruna? O que fez Marvila perder para Amanda, teoricamente duas “plantas”? O que tirou Domitila da disputa para Larissa e Amanda (estereótipo já mencionado)?
Essas questões não se explicam somente a partir das perspectivas das dinâmicas do jogo desse reality. Não se trata somente de uma questão de preferência por uma pessoa, gosto. Principalmente se entendermos que o gosto é também um processo de construção social. Mas isso é pauta pra outra coluna.
 
É preciso entender que há também o componente racial, que julga a grosseria, o autoritarismo e o deboche como positivo em pessoas brancas e negativo para pessoas pretas. Ou alguém aqui é capaz de dizer que Bruna é um bom exemplo de doçura em comparação a Domitila?
 
Outro importante fator na saída de Sarah, Domitila e Marvvila é a estrutura digital a que suas torcidas estão submetidas. Quem tem mais recursos financeiros consegue financiar melhor as votações e seus resultados. É a lógica algorítmica. Tema também para outra coluna, com certeza.
 
Infelizmente, apesar dessa edição do Big Brother Brasil ter sido a que mais trouxe participantes negros, ao que tudo indica, não teremos nenhum deles na final do programa. Depois do Ricardo (acho que será o próximo a sair), Aline Wirley tem tudo para ser a próxima mulher negra a sair do programa e assim o prêmio tende a ser disputado entre as mulheres brancas que seguem no jogo. 
 
Veremos as cenas dos próximos capítulos. 
 
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